Daniel Correia, nasceu em Brinches – Serpa, a 31.12.1931. Deixou cedo os longos espaços do Alentejo, terra da desolação, no dizer de Urbano Tavares Rodrigues, terra cercada de fomes e latifúndios, de povos vigiados e partiu a caminho de uma mirífica Lisboa onde era possível o sonho e a fortuna.
Tinha 11 anos quando aportou à capital do império. Mas Lisboa era, em 1942, uma cidade triste, cinzenta, estática, muito diferente da cidade sonhada. Urbe de pequenos comerciantes, de serventuários do regime, de acabrunhados mangas-de-alpaca, de medos dependurados das esquinas.
A guerra na Europa (e a Europa era, nessa altura, um espaço de abstracções, coisa difusa que ficava longe, para lá dos Pirinéus) obrigava a restrições, a racionamentos. O menino que trazia notícias da fome da terra alentejana, viu-se de repente numa cidade pequeno-burguesa amedrontada, agradecendo, espojada, à Virgem as côdeas diárias da escassa ração, e a Pátria salva, por Salazar, dos horrores da guerra.
Uma cidade assim cercada deixa pouco espaço para o sonho, mesmo para os comedidos sonhos de menino. A fortuna, que a havia galopante, estava circunscrita aos círculos do poder, aos colaboracionistas, aos patos bravos que construíam as novas avenidas do regime e aos videirinhos que encontraram na exploração do volfrâmio motivos bastantes para aplaudirem, sem crises de consciência, os crimes do nazismo e a visão patriótica de Salazar.
É esta cidade que o menino de Brinches encontra, junto com as primeiras botas que o tio, sapateiro, lhe oferece mal chega ao cais do Terreiro do Paço, vindo no barco do Barreiro.
Da oficina de sapateiro do tio, em pleno Bairro Alto, Daniel Correia vê, passar-lhe à porta, os mais populares actores e cantores da época. Então, o Bairro Alto, mantinha nas suas estreitas ruas, as redacções dos principais jornais, o Conservatório Nacional, as casas de fado e na sua periferia os teatros S. Luiz e Trindade, o cinema Chiado Terrasse. O próprio tio chegou a fazer sapatos para as revistas do Parque Mayer.
Deslumbrado, o pequeno Daniel descobre uma noite, na telefonia, a voz de João Villaret dizendo o cântico negro de José Régio. Fica, desde aí, preso aos sortilégios da palavra e da forma como a voz do actor lhes dava vida e expressão. A atracção é tanta, o fascínio pelas palavras tão intenso, que começa a coleccionar os poemas vindos a público nos suplementos literários dos jornais, ou aprendendo-os de ouvir na caixa mágica que a telefonia era, ditos por grandes vozes: Carmen Dolores, Maria Dulce, Manuel Lenero, Villaret, o grande Villaret.
Assiste, ao vivo, a espectáculos da rádio, famosos ao tempo: Comboio das 6 1/5, Passatempo APPA, Companheiros da Alegria, Serões para Trabalhadores, Recolhe, nestes espectáculos, elementos que o levam a pensar a rádio como espectáculo, como vida, embora efémera, como comunhão directa com o público.
Aos dezoito anos casa e muda-se para Almada. Começa a dizer poesia em sessões da Incrível Almadense e na Academia. Torna-se, aos poucos, como ele gosta de afirmar, militante da poesia. Frequenta bibliotecas públicas, recolhe poemas, começa a guardar, no recanto dos afectos, os poetas que sempre o acompanharão: Carlos Conde, Sebastião da Gama, Régio, Manuel Alegre, Ary dos Santos, Aleixo. Quando, no inicio dos anos oitenta se muda para Samora Correia, junta a estes os poetas locais que então conhece – e não só conhece, começa a divulgar: Isabel Alemão, Albertina Pato, Piedade Salvador. Começa, então, um tempo de rádio, das rádios livres ou piratas como então eram conhecidas.
Daniel Correia começa, com uma equipa de entusiastas, a divulgar a poesia em programas como Despertar à Portuguesa, Romaria, Poesia na Noite, Fado e Palavras Ditas, Hino à Poesia. Revelam-se, através destes programas, alguns dos poetas populares mais importantes do concelho de Benavente.
Hoje, as rádios tornaram-se instrumentos anódinos, espaços que é preciso ocupar com programas que preencham a azáfama dos dias, sem alma, sem rosto. Comercializaram-se até à promiscuidade, politizaram-se até à mais aberrante tacanhez. Não há lugar para a poesia, para os escritores, para a palavra sensitiva, para a pausa que remete para os sentidos, para o humano que em nós habita – as rádios são desertos inócuos, povoados de acéfalos animadores de bruma, passadores acríticos de música abjecta. Já lá não cabe o sonho e as palavras que transformam e comandam a vida. Daniel Correia sabe-o, e porque o sabe, vai dizendo os seus poetas de sempre nos espaços ainda possíveis. Sempre, enquanto a memória perdurar.
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